sábado, 10 de março de 2012

2ª aula: texto de Antonio Joaquim Severino (para o dia 31/03)

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Texto introdutório do livro Educação, Sujeito e História, de Antonio Joaquim Severino 

Desde suas origens gregas, a tradição filosófica e cultural do Ocidente sempre priorizou a teoria ao se referir à significação dos fenômenos e eventos da realidade. Teoria entendida e exercida como simples jogo combinatório de idéias, dimensão privilegiada e prestigiada como uma esfera autônoma, desenvolvendo-se no mundo inteligível, como se fosse uma atividade situada numa dimensão qualitativamente superior às atividades práticas desenvolvidas no mundo sensível, marcadas pela contingência. Antropologicamente falando, o pensar humano surge como uma experiência de subjetividade, um exercício autônomo frente à vida prática. Mais ainda, como se antecedesse a ação . 

Ao longo de sua experiência de quase três mil anos, de tanto privilegiar a atividade teórica, a filosofia ocidental acabou atribuindo-lhe muita autonomia na elaboração de seus produtos. Isso ocorreu porque o processo da subjetividade era visto como uma contemplação mental dos objetos. Daí a prevalência das idéias em relação a objetos e ações práticas. Por isso, apesar de a manifestação da educação ocorrer no plano concreto, tendeu-se a explicá-la a partir das idéias mediante as quais era representada. 

De modo especial diante de fenômenos como a educação, constata-se que seu significado (assumido como conteúdo mental e representação simbólica transposta da contemplação do real) é o resultado de um complexo processo de construção, realizado através da atividade prática, da qual a teoria é apenas uma dimensão. É a prática que constrói a educação assim como toda expressão da existência humana. Toda explicação teórica deve ter a condição prática como referência fundamental. 

Ao agir de modo prático para educar, o educador constrói a educação em sua condição real, compartilhando-a com os educandos. Não é só compartilhar através de um olhar intelectual comum, mas de uma incorporação mediante a prática. Como mediação privilegiada da educação, o ensino não passa apenas informações, mas, sobretudo um procedimento. Mais que um discurso em sentido estrito, as práticas do cotidiano educacional formaram um ethos, um modo de ser e de viver. 

No entanto, a prática humana é opaca. Ela não se auto-esclarece apenas por efetivar-se. Sendo humana, ela é intencional e se vincula a fins, muito além da eficácia mecânica. Ao ganhar flexibilidade, não se submete mais à determinação de mecanismos rígidos dos instintos. Mas a intencionalidade (significação conceitual e/ou valorativa que orienta nosso agir) que impregna a prática humana nem sempre é transparente; o mais das vezes, ela se camufla sob disfarces ideológicos ou outras formas de alienação de tal modo que o sujeito, em sua cotidianidade, nem sempre tem plena consciência do sentido de suas ações. Nosso agir social, embora não seja puro instinto, é ambíguo quanto a sua gênese e fontes intencionalizantes. Suas fontes energéticas encontram-se num emaranhado complexo de vetores orgânicos, psíquicos, sociais e culturais que se amalgamam no âmbito de nossa subjetividade e quase nunca no plano consciente. Na maioria das vezes, manifestam-se na homogeneidade do senso comum como consciência iludida e ingênua. 

Não obstante, a prática humana precisa da teoria para se expressar significativamente. Ela seria muda se não se exprimisse pelo pensamento e pelo conceito. O seu sentido não se revela mecanicamente, mas só se dá a um sujeito que seja capaz de lê-lo. A teoria, em sentido amplo, é o esforço de realizar essa leitura e explicitar o sentido imanente à prática. É o meio possível para a leitura da realidade, para que ela possua algum sentido. Assim, as práticas concretas são a base do fenômeno educativo e lhe dão realidade; mas a teoria dá configuração ao objeto como tal, enquanto educação. A prática humana, em que pese a opacidade de sua gênese, só pode ser esclarecida e significada pela lucidez da consciência e pela expressão teórica da subjetividade. Não há outro caminho. 

Portanto, a atividade teórica ganha sentido na medida em que se faz como intencionalização da prática, que opera quando efetiva o esclarecimento. No âmbito educacional, a teoria tem por finalidade esclarecer os elementos envolvidos na prática, dando-lhes sentido norteador e referência do processo, evitando que a intervenção educativa se tome puramente mecânica. 

A intencionalidade supera a transitividade da prática. Esta, por ser dependente das mediações objetivas, corre o risco de se efetivar de modo automático mediante o jogo das forças transitivas da naturalidade dos mundos físico-biológico ou sócio-cultural. Daí a exigência da intervenção significadora da prática simbólica da consciência cognoscitiva e avaliativa, a qual instaurará o sentido da prática. Por isso, a educação só é humanizadora se for intencionalizada pelo conhecimento e pela valoração, desde que referidos à significação apreendida na existência histórico-social. 

Ciência e filosofia, as duas modalidades de conhecimento mais desenvolvidas na cultura ocidental, participam da construção do conceito da educação, pois elaboram sua intencionalidade e significação. Trata-se do investimento global da atividade cognoscitiva com vistas a estabelecer as referências norteadoras da prática educacional, tal como planejada e executada pelas sociedades históricas. 

Atribuir hoje essa responsabilidade à filosofia exige que, à luz do seu desenvolvimento, se defenda o papel intencionalizador da razão. Caso esta seja assumida como o núcleo do sujeito capaz de construir, mediante diferentes modalidades de conhecimento, o significado conceitual das coisas, ao longo do tempo histórico em que se realiza a cultura, tenha-se claro que não se trata de uma trajetória harmoniosa nem conduzida pela força transcendental de uma necessidade determinística. É, sim, um processo sinuoso, crivado de obstáculos e com resultados marcados pela ambigüidade. Uma situação complexa na ciência se toma muito mais delicada no caso da filosofia, solo da tarefa mais crucial: elucidar o sentido da existência. O ato de conhecer é comparável à situação de um piloto de avião voando em condições precárias. Quando a visibilidade é pouca, ele pode conduzir a aeronave por meio de instrumentos, sem sair da rota nem correr risco de erros graves. Mas, quando se trata de guiar a sua vida, dando-lhe um norte a partir da intencionalização de sua ação prática, o sujeito nunca se encontra em “céu de brigadeiro” e seu vôo não é feito à plena luz do mundo das idéias, nem automaticamente. O vôo do espírito se faz em meio à neblina, nunca escapa às brumas! O erro do Iluminismo foi considerar que a razão eliminaria todo traço de trevas. Clareia, sim, mas é uma claridade refratada na neblina e ofuscada.

Platão simplificou nossa condição em sua Alegoria da Caverna. É verdade que, pelo exercício do conhecimento intelectual, o espírito sai da caverna. Mas fora dela não está sob plena luminosidade! No lado de fora, a luz do Sol se mistura às brumas. 

Assim, a transparência dos atos relacionados à subjetividade não é absoluta. Merleau-Ponty tem razão ao considerar que o conhecimento humano, mesmo o mais lúcido, nunca consegue eliminar certa ambigüidade. Essa convicção é uma marca forte em quase todas as expressões da filosofia contemporânea, chegando até a uma postura cética e pessimista. Esta se contrapõe ao otimismo do pensar iluminista e procura legitimar-se como recusa da modernidade e afirmação da pós-modernidade. 

Paira no ar aguda consciência do drama da contingência humana e das limitações de seu poder mais específico: a utilização da subjetividade racional.  Ao longo de sua história como construtor do conhecimento, o sujeito não transita apenas por caminhos suaves, balizados por conquistas e consolidações, mas também por fracassos. O mais terrível é que o inimigo maior da razão não se encontra fora dela. Ao longo de sua trajetória, desde quando foi observada, a racionalidade humana encontra o maior obstáculo em seu interior, sendo freqüentemente derrotada por si mesma numa implacável luta contra a desrazão. 

Por isso, a construção do conhecimento - que deveria intencionalizar a existência humana na dimensão teórica e nas aplicações éticas, políticas ou pedagógicas - é atravessada por percalços, num caminhar repleto de promessas e de tantas desilusões. O absurdo sempre afronta o lógico: isso faz com que muitos, como os filósofos arqueo-genealógicos, afirmem que o desenvolvimento do humano tem história, mas não tem lógica. 

A História nos últimos milênios apóia tal ceticismo. Apesar dos investimentos e avanços da intervenção racional sobre as mediações do destino da espécie, a cultura contemporânea mostra um saldo em que a desrazão parece vencer; a humanidade não consegue conduzir sua existência referindo-se a significações que correspondam a uma maior humanização. O espetáculo que a sociedade se oferece neste início de terceiro milênio ocidental é uma exposição em carne viva da derrota do senso racional frente a desmandos de toda ordem. A barbárie está levando a melhor sobre a civilização, uma possível organização racional da sociedade. Quando a economia se guia sobretudo pela insondável “mão invisível do mercado”, percebe-se a prevalência da irracionalidade. Como é possível a razão destruir sua única referência cabível? De que valeria esse maravilhoso equipamento da subjetividade se acabássemos desfigurados por ele?

A convivência dos homens entre si e com a natureza mostra-se insustentável e ameaça acuar o espaço pessoal de existência digna. Os indícios de uma androidização da espécie aumentou nas últimas eras, ao mesmo tempo que os processos da produção e distribuição de bens atiram segmentos enormes no limbo da exclusão, condenando-os à inanição. Não mais se verificam circunstâncias conjunturais, mas processos estruturais, nos quais alguns setores jogam com plenos poderes e fria lucidez. Nessa entropia, a civilização se tomou barbárie e a lógica racional se fez irracional idade. Ser racional é a última característica da lógica do mercado! 

Os homens dispõem apenas da razão para enfrentar e reorientar essa situação de acordo com alguma intencionalidade. Essa razão, que responde pela enlouquecida corrida rumo à barbárie total, é a única ferramenta da espécie para construir a civilização. Só o conhecimento poderá esclarecer-nos e apresentar significações para redirecionar nossa prática, mediadora da existência, potencializando as dimensões humanizadoras. 

A educação é radicalmente vinculada ao conhecimento e se toma sua mediadora para intencionalizar a prática humana. Daí sua importância para a existência e a imperiosa necessidade de se transformar a estratégia pedagógica em esforço de universalizar o poder intencionalizador do conhecimento, de modo que todos os sujeitos se dêem conta dos sentidos que redicionariam sua ação na linha de maior humanização. 

Sendo a única via para significar a ação construtora da História, o conhecimento se firma como índice de transcendência no seio de sua total imanência. O modo de existir do homem, imerso nas condições objetivas, impele-o a ultrapassar essas condições, na medida em que as nomeia, re-significa e articula no desencadeamento e execução de sua ação prática. 

Assim, toda explicação formulada pela subjetividade racional esbarra na radical contingência do conhecimento, em sua historicidade. A imanência denuncia, como petulância arbitrária, qualquer pretensão ao conhecimento trans-histórico, bem como a verdades definitivas e referências absolutas. 

Essas limitações não eliminam o compromisso de praticar uma “transcendência histórica”, investir na construção de verdades provisórias, explicitar valores para legitimar finalidades datadas participando da construção de sentido. Se ao conhecimento humano é vedado o acesso a qualquer verdade trans-histórica, não lhe é impossível estabelecer saberes históricos como referência para sua prática, definindo rotas em nosso vôo por entre brumas. Tal vôo não só não é impossível, mas é necessário, apesar das limitações. 

A presente reflexão assume essa premissa. A filosofia deve ser praticada oportuna e inoportunamente, ciente de seus condicionamentos. No caso da Filosofia da Educação, compromete-se na elucidação do sentido da estratégia pedagógica do conhecimento. 

Pretendo explicitar o papel da filosofia no processo de educação, conceitualmente e em seu pleno significado, bem como o sentido de uma Filosofia da Educação e sua contribuição ao compreender o significado do processo educacional. É sob a modalidade filosófica que o conhecimento realiza essa tarefa. 

Referencia bibliográfica 

SEVERINO, Antônio Joaquim. Educação, sujeito e história. São Paulo: Olho d’Água, 2001, p. 7 – 13.

quinta-feira, 8 de março de 2012

O papel da educação na sociedade capitalista

Vídeo-conferência do prof. Dr. Valério Arcary sobre o papel da educação na sociedade capitalista e o papel dos trabalhadores frente a esse paradigma.